sábado, 26 de fevereiro de 2022

POESIA É CULTURA E INSUBORDINAÇÃO.


                    COMEMORAMOS OS 89 ANOS DO NASCIMENTO DE  RUY BELO 

 

Nos idos de 1933 deram-se acontecimentos que tiveram consequências  catastrófica e sangrentas a nível planetário. Por exemplo: a burguesia, em particular os banqueiros, os grandes industriais alemães e os partidos que representavam os seus interesses apoiaram a ascensão dos nazis ao poder - impondo a nomeação de Hitler para Chanceler; e, em Portugal é institucionalizada a ditadura fascista (Estado Novo), através de um plebiscito fraudulento.

Nesse mesmo ano, na freguesia de S. João da Ribeira, concelho de Rio Maior, nasceu a 27 de Fevereiro Rui de Moura Ribeiro Belo. O poeta Ruy Belo deixou-nos, apesar da sua morte prematura, uma obra poética de grande valor mas também, em letra de forma, a sua própria definição do papel da poesia e do poeta, como o demonstra o texto que passamos a transcrever:

 

BREVE PROGRAMA PARA INICIAÇÃO AO CANTO

 

Ao escrever, e independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência de que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde um dia nasci para nela morrer um dia para sempre. Dou palavras um pouco como as árvores dão frutos, embora de uma forma pouco natural e até antinatural porquanto, sendo como o é a poesia uma forma de cultura, representa uma alteração, um desvio e até uma violência exercidas sobre a natureza. Mas, ao escrever, dou à terra, que para mim é tudo, um pouco do que é da terra. Nesse sentido, escrever é para mim morrer um pouco, antecipar um regresso definitivo à terra. 

Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem, uma harmonia, uma paz que, mais do que a paz invocada como instrumento de opressão, mais do que a paz dos cemitérios, é a paz, a harmonia das repartições públicas, dos desfiles militares, da concórdia doméstica, das instituições de benemerência. Ao escrever, mato-me e mato. A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.

O poeta deve surpreender-se e surpreender, recusar-se como instituição, fugir da integração, da reforma que até mesmo pessoas e grupos aparentemente progressivos lhe começam subtilmente a tentar impor o mais tardar aos trinta anos. Abaixo o oportunismo, a demagogia, seja a que pretexto for. O poeta deve desconfiar dos aplausos, do êxito e até passar a abominar o que escreveu logo depois de o ter escrito. Numa sociedade onde quase todos, pertencentes a quase todos os sectores, procuram afinal instalar-se o mais cedo possível, permanecer fiéis à imagem que de si próprios criaram pessoalmente ou por interpostas pessoas, o poeta denuncia-se e denuncia, introduz a intranquilidade nas consciências, nas correntes literárias ou ideológicas, na ordem pública, nas organizações patrióticas ou nas patrióticas organizações.

Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. Alguém se encarregará de institucionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição. Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguiram calar, amordaçar, reduzir.

É claro que falo do poeta e não do poetastro, do industrial e comerciante de poemas, do promotor da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que constantemente se sublevou.

Falo do homem que, ombro a ombro com os oprimidos, empunhando a palavra como uma enxada ou uma arma, encontrou ou pelo menos procurou na linguagem um encontro para o silêncio que há no vento, no mar, nos campos.

O poeta, sensível e até mais sensível porventura que os outros homens imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a todo o custo a vida privada. Ai dele se não desceu à rua, se não sujou as mãos nos problemas do seu tempo, mas ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade rotundamente incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo, finalmente pacífico, finalmente adormecido, finalmente senhor e súbdito do silêncio que em vão tentou apreender com as palavras, finalmente disponível não já tanto para o som dos sinos como para o som dos guizos e chocalhos dos animais que comem a erva que afinal pôde crescer no solo que ele, apodrecendo, adubou com o seu corpo merecidamente morto e sepultado.

Em: Ruy Belo - Todos os Poemas, Círculo dos Leitores, 2000, pp. 267/8.