quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

MUDAR DE VIDA - JOSÉ MÁRIO BRANCO

Hesitei
Se havia de escrever esta canção
Porque a vida não se pode resumir numa canção
Mudar de vida…
Mudar de vida é uma questão
qu’inda não está resolvida
Aliás, para quê mudar de vida?
Estará assim tão mal a minha vida?
Mas o que é a minha vida
senão a própria vida
que está contida
em toda a força perdida
em toda a vida perdida
consumida
passada, repassada, ultrapassada
como se não fosse vida?
A minha vida – não há
Uma vida mesmo vida
só pode ser um espaço
que está dentro de um abraço
que se dá ou não se dá
Vida verdadeiramente
é sempre a vida da gente
que penosamente
insistentemente
inexplicávelmente
vai fazendo andar a roda
que fabrica a vida toda

Uma vida separada
se parada
se vida seca e mais nada
se for vida distraída
alienada
sozinha, irrelevante, e auto-ignorada
já não é vida vivida
Uma vida separada
não é vida nem é nada
São corpos minerais
nem plantas nem animais
Pois quem vive distraído
à conta do seu umbigo
quem não é capaz de dar a vida
pela vida de um amigo
está sozinho com os outros
e está sozinho consigo
… pelo menos, é assim que eu vejo as coisas…
Então,
mudar de vida p’ra quê?
Em tudo o que foi vivido
procuramos um sentido:
o que essa vida nos diz
uma matriz
um pendor
um sonho, um amor, um desamor, uma paixão
uma razão
– ou uma grande razão
Por baixo de cada vida
há essa roda que gira
com os ratinhos lá dentro
a fazer a roda andar
As coisas materiais
as coisas essenciais
o pão, a casa, os sinais
que são a vida directa
a existência concreta
As coisas que estão à mão
que nos parecem normais
- a paz, o pão, a saúuude, a habitação -
Então:
Mudar de vida?

Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar o pontapé na morte
Mudar de vida
Mudar de vida, romper
Romper o cordão da sorte
Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar as mãos para o caminho
Mudar de vida
Mudar de vida, mudar
Que isto não muda sozinho
Mudar de vida
Mudar de vida, pôr
Pôr em marcha o movimento
Mudar de vida
Mudar de vida, acordar
Acordar o pensamento

Vida verdadeiramente
é sempre a vida da gente
que penosamente
insistentemente
inexplicávelmente
vai fazendo andar a roda
que fabrica a vida toda
Muitos de nós nem dão conta…
Achamos isso normal…

Mas afinal:
E a hora de trabalho que há em cada coisinha?
E o cansaço da mãe co’as panelas na cozinha?
Como se chama a Judite que me fez esta camisa?
Onde está o Eduardo que fez este projector?
E onde pára o Vladimir que ergueu aquela parede?
Estão não sei onde
Do outro lado daquilo a que nós chamamos vida
A vida deles
para nós não é bem vida
é – digamos assim – mercadoria produzida
São umas “coisas”…
Umas coisas que vivem… sei lá onde, sei lá como…
Viverão?
Essa gente
- tirando alguma excepção -
não está confortavelmente
aqui sentada à minha frente
ouvindo a minha canção
Vai vendo telenovelas
Olhos perdidos no espaço
A digerir o cansaço
A descansar do vazio
São corpos esgotados
destinados
a serem recarregados
que amanhã é outro dia
em que vão trocar por pão, ou tudo, ou nada
mais e mais mercadoria
fabricada, montada, embalada e transportada
que p’ra eles não vale nada

Estes de que falo são 66% da gente do meu país
Há mais 24% que sobrevivem nas pregas do pesadelo
Sobram dez
Dos dez por cento, são oito
os que duma ou doutra forma
levam cheios de arrogância
as migalhas do biscoito
que são o seu resgate da esperança
- que estão nas tintas pra tudo, a começar por si próprios
Ficam os tais dois por cento
os que a gente nunca vê
mas que nos veem a todos
Quem fabrica um parafuso
uns sapatos, uma estrada
qualquer coisa fabricada
recebe um xis pela hora
pelo gesto, pela vida emprestada
que não é vida nem nada
Amortizado o capital constante
pagas as despesas todas
incluindo o esperto que teve a ideia
fica então a mais-valia
que é a demasia
entre o valor da mercadoria
e os gastos do patrão
o esperto que teve a ideia
o empreendedor
que pôs os outros a viver p’ra ele
Porquê?
Porque os valores são outros
- Quais são os teus valores, Zé Luís?
- Os meus valores?
- Sim, quais são os teus valores?
- Bem… o Amor? a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade? a
Amizade? … a Justiça, ora aí está
– ah, e também a Honestidade
- E tu, aí, quais são os teus valores?
- Os meus valores?
- Sim, quais são os teus valores?
- Os meus valores estão na Bolsa de Valores
Ao qu’ isto chegou!
A minha vida p’ra isto?
é o que tendes p’ra me dar?
é o que tendes para me obrigar? para me impor?
Mudar de vida !

 Mudar de vida!
Mudar de vida é urgente
é o que diz essa gente
pelo menos
é o que pensa essa gente
é o que essa gente sente
Se a vida fosse dif’rente…
vida vivida de frente
vida cordata e feliz
Mesmo quando não o diz
é isso que a gente sente
Isso é que era bom! não faltava mais nada!
dizem esses que não vemos, mas que mandam nisto tudo –
Então, e a nossa mais-valia
a quem a vamos roubar?
“Horrorizais-vos porque queremos abolir a propriedade privada.
Mas na vossa sociedade actual a propriedade privada está
abolida para nove décimos da população. E é justamente porque
não existe para esses nove décimos que existe para vós.”
Mudar de vida
—  Mudar de vida!
Mostrar a vida escondida por baixo do sofrimento
Libertar a mais-valia que está na mercadoria
—  Libertar a mais-valia que está na mercadoria!
Uma vida mesmo vida
só pode ser um espaço
que está dentro de um abraço
que se dá ou não se dá
Vida verdadeiramente
é sempre a vida da gente
que penosamente
insistentemente
inexplicávelmente
vai fazendo andar a roda
que fabrica a vida toda
Mudar de vida?
—  Mudar de vida!

Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar o pontapé na morte
Mudar de vida
Mudar de vida, romper
Romper o cordão da sorte
Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar as mãos para o caminho
Mudar de vida
Mudar de vida, mudar
Que isto não muda sozinho
Mudar de vida
Mudar de vida, pôr
Pôr em marcha o movimento
Mudar de vida
Mudar de vida, acordar
Acordar o pensamento.


Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar o pontapé na morte
Mudar de vida
Mudar de vida, romper
Romper o cordão da sorte
Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar as mãos para o caminho
Mudar de vida
Mudar de vida, mudar
Que isto não muda sozinho
Mudar de vida
Mudar de vida, pôr
Pôr em marcha o movimento
Mudar de vida
Mudar de vida, acordar
Acordar o pensamento

Mudar de vida?
Mas como é que hás-de poder mudar de vida?
Poder
Mudar de vida
Mas como mudar de vida
se esta vida é uma ilha
perdida no oceano
e o nada a perder de vista
— só água, só água, só água funda e cavada
lá dentro não se respira
só se flutua e se nada
está-se sozinho e se nada
nada, nada, e mais nada
como na ilha de Antero
onde a vida é recusada
Nem sequer sei o que quero
Vamos a ver
se no esforço d’ap(e)neia
eu produzo alguma ideia
que me possa ter de pé
Se inda não sei o que quero
se inda não sei o que é
vou saber o que não quero
Vou deixar de dizer “eu”
E vou deixar de ser eu
Passar a ser também tu

Cantar a democracia
Aqui
nas margens da alegria
— o Antero e o Ruy Belo —
E vou tratar-te por tu
meu caro concidadão
porque na democracia
nós somos todos iguais
em direitos e em deveres
Mas desculpa perguntar
“em direitos e deveres”, muito bem
e…
nos teres e nos haveres?
E as palavras tão bonitas
…que estão na Constituição
Palavras tão bem escritas
— porque é que lá estão escritas? —
…que somos todos iguais
acabar co’a exploração
…que o que decide de tudo
é o voto, a eleição
Essa estrutura madura
com que exerces o poder
do cidadão
Será talvez poder?
Poder o quê?
Poder ir à comunhão
no dia da eleição
escolher
entre a fome e a vontade de comer?
Talvez mudar de vida?
—  Mudar de vida!

Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar o pontapé na morte
Mudar de vida
Mudar de vida, romper
Romper o cordão da sorte
Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar as mãos para o caminho
Mudar de vida
Mudar de vida, mudar
Que isto não muda sozinho
Mudar de vida
Mudar de vida, pôr
Pôr em marcha o movimento
Mudar de vida
Mudar de vida, acordar
Acordar o pensamento
(coro sem letra - uníssono)
Então
e o que escolhes, cidadão?
Escolhes o quê?
Que tal é esse menu
onde quem decide és tu?
Será que ainda não topas?
Tu eleges
Eles governam
Governam e são governados
pelos privilegiados
do capital ab(e)stracto
que desde setenta-e-quatro
vem fazendo as suas opas
sobre tudo o que tu tens
dinheiro dos teus impostos
Opas p’ra todos os gostos
sobre as funções sociais do Estado democrático
Andas enganado, meu irmão
A eleição é um contrato
— Votem em mim, que eu faço isto, faço aquilo —
e depois?
Não é só não ser cumprido
é ser cumprido ao contrário
Virar o prego ao contrário
p’ra espetar na tua vida
Pra estrugir a tua vida
na panela inoxidável do mercado
Estás lixado
Tu pensas que é um contrato
Mas eles não têm palavra
Eles não estão lá p’ra isso
A palavra que eles têm
foi segredada baixinho
à mesa da reunião,
no jantar, ou no salão,
nos corredores com tapetes
onde ninguém faz barulho,
onde essas almas vendidas
vão vasar o seu entulho
Mudar de vida?
—  Mudar de vida!
O contrato da eleição
é um vestígio, um derriço
uma imagem de Jesus no oiro do Vaticano
Dá muitos milhões por ano
Porque a regra desse trato
não é contrato nenhum
É tudo publicidade
a ver quem melhor te enrola
nas eleições de amanhã
Durão-Sumol de maçã
E Sócrates-Coca-cola
Eleição – mis-ti-fi-ca-ção!
“Essa magestosa igualdade perante a lei,
que permite tanto aos ricos como aos pobres
passarem a noite debaixo das pontes.”
“De tantos em tantos anos,
decide-se quais são os membros da classe dominante
que vão representar e esmagar o povo no parlamento”.
— Ó Chico!
Queres Sumol ou Coca-cola?
Agora anda cá escolher
entre a fome e a vontade de comer

Escolhe, filho, escolhe — e fica parado, paradinho, a assobiar aos
cães, que o Portas vai-te resolver tudo com mais três submarinos
de guerra a doze milhões cada um, eles vão-te inventar umas
conversas
dessas
roteiros p’rà inclusão
o abono contra a exclusão
a europa social a dizer “olá pequeninos!”
eles fazem o favor de achar que é uma pena
os sem-abrigo e a fome
e tudo isso em teu nome
Elege, filho, elege — e produz a tua mais-valia, que é para ta
sacar que eles lá estão, foi para isso que os lá puseste
“Bem tentais não vos ocupar de política,
mas a política ocupa-se de vós”.
Não digas que não te avisei
Não te venhas cá queixar, amanhã
Se o teu patrão deu à sola
co’os teus vinte anos de vida
vinte anos de trabalho
Durão-Sumol de maçã
e Sócrates-Coca-cola
O dono disso tudo
é o capital ab(e)stracto
que são pessoas concretas
que tê-em muito dinheiro nas gavetas virtuais
Não sais da cepa-torta?
Pois não.
Sempre que os vais eleger
eles vão organizar como é que te hão-de torcer
cepo-torto, cepa-torta
muita vida mais que morta
vivida no não-viver
“Se o trabalho chamasse o dinheiro,
estavam os bois podres de ricos”.
Mudar de vida?
— Mudar de vida!
Mostrar a vida escondida por baixo do sofrimento
Libertar a mais-valia que está na mercadoria
—  Libertar a mais-valia que está na mercadoria!
Uma vida mesmo vida
só pode ser um espaço
que está dentro de um abraço
que se dá ou não se dá
Vida verdadeiramente
é sempre a vida da gente
que penosamente
insistentemente
inexplicávelmente
vai fazendo andar a roda
que fabrica a vida toda
Mudar de vida?
—  Mudar de vida!

Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar o pontapé na morte
Mudar de vida
Mudar de vida, romper
Romper o cordão da sorte
Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar as mãos para o caminho
Mudar de vida
Mudar de vida, mudar
Que isto não muda sozinho
Mudar de vida
Mudar de vida, pôr
Pôr em marcha o movimento
Mudar de vida
Mudar de vida, acordar
Acordar o pensamento

Antero! meu Mestre!
Convoco-te ao fazer desta
com esse teu sinal vermelho
mesmo no meio da testa
A Unidade que procuraste
a Utopia dos loucos…
Disseste um dia
a chorar de alegria
de esperança precoce e intranquila:
“Vós, poetas, que sois os loucos porque andais na frente!”
Utopias
têmo-las todos os dias
realizamos umas tantas
a cada dia que passa

Nos anos 20 do século do mesmo nome, para tentar deter o
flagelo social da sífilis, que dizimava pobres e exércitos, o biólogo
alemão Ehrlich fechou-se no laboratório.
Tentou uma experiência e falhou.
Tentou duas, falhou.
Três, quatro, cinco, seis – falhou sempre.
Até que conseguiu um tratamento – chamou-se “tratamento
Ehrlich 606”.
Mas ainda não conseguia curar a doença sem matar o doente.
Então Ehrlich continuou, mais uma, e outra, e outra. A cura,
finalmente conseguida, chamou-se “Ehrlich 914”.
Quantas vezes já tentámos nós?
— novecentas e catorze? ainda não!
— seiscentas e seis? ainda não!
mas talvez… quem sabe
dez? vinte?
qual é o preço da esperança?

“Acordai!
Acordai! homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
Vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raiz!”
“Estamos de punhos fechados
mas temos as mãos nos bolsos”
Então:
Mudar de vida?
— Mudar de vida!

Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar o pontapé na morte
Mudar de vida
Mudar de vida, romper
Romper o cordão da sorte
Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar as mãos para o caminho
Mudar de vida
Mudar de vida, mudar
Que isto não muda sozinho
Mudar de vida
Mudar de vida, pôr
Pôr em marcha o movimento
Mudar de vida
Mudar de vida, acordar
Acordar o pensamento

Antero! meu Mestre!
Convoco-te ao fazer desta
com esse teu sinal vermelho
mesmo no meio da testa
Disseste um dia:
“Não disputeis, curvado o corpo todo,
as migalhas da mesa do banquete:
Erguei-vos! e tomai lugar à mesa…”
Mudar de vida?
—  Mudar de vida!
Levar o sonho de Antero
às mulheres do Vale do Ave
às da Zara, às da Maconde e às da Rohde
aos homens da Pereira da Costa
aos homens da Sorefame
da Autoeuropa e da Azambuja
aos meus irmãos da Cova da Moura e da Arrentela
ao milhão de desprezados,
ao lixo do capital
aos seres humanos dispensáveis,
descartáveis, recicláveis
a esses olhares perdidos
dos nossos telejornais
Levar o sonho de Antero
aos humilhados e ofendidos
“Erguei-vos! e tomai lugar à mesa…”
Libertar a mais-valia que está na mercadoria

 — Libertar a mais-valia que está na
mercadoria!
Mostrar a vida escondida por baixo do sofrimento
Acordar a força
Acordar a força motriz
A energia matriz de onde nasce o movimento
A raiz
Mudar de vida!
— Mudar de vida!

Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar o pontapé na morte
Mudar de vida
Mudar de vida, romper
Romper o cordão da sorte
Mudar de vida
Mudar de vida, dar
Dar as mãos para o caminho
Mudar de vida
Mudar de vida, mudar
Que isto não muda sozinho
Mudar de vida
Mudar de vida, pôr
Pôr em marcha o movimento
Mudar de vida
Mudar de vida, acordar
Acordar o pensamento