Segundo os censos de 1930, havia no concelho de Santarém um total de 878 pessoas que trabalhavam nas indústrias do vestuário e calçado.
E a maioria eram mulheres (50,9%).
Na ausência de grande indústria, era um universo de ateliers ou pequenas ificinas de sapataria, alfaiataria e costura.
Dessas mulheres, mais de metade trabalhavam como auxiliares dos respectivos maridos ou pais - os "chefes de família", na expressão patriarcal que se usava à época.
Mas 29% delas tinham emprego próprio, trabalhando por conta de outrém. E havia ainda um número significativo que trabalhavam por conta própria: 14,5%.
sendo masculinos os ofícios de sapateiro e alfaiate, as mulheres de que estamos falando eram essencialmente costureiras.
Michelle Perrot
A relevância social das costureiras não era apenas um fenómeno local ou sequer nacional.
Numa perspectiva europeia, a historiadora francesa Michelle Perrot sublinha que "a costura foi um imenso viveiro de empregos, de ofícios, de qualificações para mulheres, e isto durante séculos" [no seu livro Mon histoire des femmes].
Na história do movimento operário português, foi de costureiras o segundo sindicato feminino em Portugal, logo a seguir às lavadeiras de Lisboa, na década de 1890.
Não será assim de espantar que uma costureira se tenha salientado nos primórdios da Sociedade Recreativa Operária scalabitana.
Carlos Gomes
Filha de um sapateiro, Irene Palmeiro nasceu na cidade de Santarém, no dia 28 de Dezembro de 1900.
Tinha apenas 15 anos de idade quando entrou para a história: foi a protagonista do primeiro grupo de teatro da Associação Fraternidade Operária (atual SRO).
Estreou-se em junho de 1916, no que é hoje o Teatro Sá da Bandeira.
Foi um espectáculo encenado pelo fotógrafo Carlos Gomes e musicado pela Banda dos Bombeiros de Santarém.
Os cenários parecem ter estado a cargo do pintor Francisco Vilela.
Segundo um crítico da época, a "novel amadora" Irene Palmeiro "tem serenidade e presença de espírito, e com algum trabalho e estudo não será difícil fazer dela uma amadora das que se podem ver sem enfado".
Ainda em 1916, Irene Palmeiro salientou-se na quermesse e festas de natal promovidas pela coletividade operária.
Virgílio Venceslau
Em dezembro de 1917, Irene Palmeiro atuou na estreia da «Tuna Operária» de Santarém. Este agrupamento musical era regido pelo então jovem maestro Virgílio Venceslau - que seria mais tarde regente de várias bandas filarmónicas ribatejanas, como as de Alpiarça, Azambuja, Azinhaga, Muge e Vale da Pinta (Cartaxo).
A estreia realizou-se no Palácio Landal, onde já estava sediada a SRO.
Segundo este jornal então noticiou, "depois de algumas palavras de saudação ao regente da Tuna [...] e aos executantes, proferidas pelo secretário da direção", a tuna "executou um escolhido programa que numerosa assistência aplaudiu com entusiasmo".
Por sua vez, os atores "amadores Irene Palmeira e Pires Ferreira desempenharam muito proficientemente alguns números «Folies Bergéres» obtendo ovação.
E "seguiu-se o baile, que decorreu animadíssimo, terminando às 6 horas da madrugada".
Padre Chiquito
Naquele tempo, era usual as comemorações do 1º de Maio incluírem um desfile com carros decorados, os quais representavam diferentes ofícios e setores profissionais.
Pois no 1º de Maio de 1919 de Santarém, o primeiro desses carros foi precisamente o das costureiras, seguidas pelos empregados no comércio, os carpinteiros, os sapateiros, os cordoeiros e os tipógrafos. Pelo meio foram escolas, associações mutualistas, duas bandas filarmónicas, tudo isto atrás de um carro com o retrato do Padre Chiquito, conduzido pelas meninas a cargo do Lar de S. António.
É muito provável que Irene Palmeiro tenha sido uma das costureiras neste desfile.
Ela figura, aliás, numa foto de grupo com dirigentes da SRO, junto do monumento ao Padre Chiquito, inaugurado precisamente no 1º de Maio de 1919.
Em 1921, Irene Palmeiro casou-se em Lisboa. E ali faleceu, em 1970.
Luís Carvalho - Investigador
Artigo originalmente publicado no CORREIO DO RIBATEJO a 13 de Junho de 2025