HUMANIDADE
Na tarde calma e fria que circula
por entre os eucaliptos e a distância,
olhando as nuvens quase nada rubras
e a névoa consentida pelos montes,
névoa não subindo por não ser
fumo da vida que trabalha e teima,
e olhando uma verdura fugitiva
que a noite no céu queima tão depressa,
esqueço-me que há gente em cada parte,
gente que, de sempre, sofre e morre,
e agora morre mais ou sofre mais,
esqueço-me que a esperança abandonada,
a não ser de ninguém, é sempre minha,
esqueço-me que os homens a renovam,
que o fumo dos seus lares sobe nos ares...
Esqueço-me de ouvir cheirar a Terra,
esqueço-me que vivo... E anoitece.
GLÓRIA
Um dia se verá que o mundo não viveu um drama.
Todas estas batalhas, todos estes crimes,
todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se em
[carne viva
e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta,
todos estes poetas furados por balas
e todos os outros poetas abandonados pelos que
nem coragem tiveram de matar um homem,
toda esta mocidade enganada e roubada
e a outra que morreu sabendo que a roubavam,
todo este sangue expressamente coalhado
à face íntegra da terra,
tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros.
Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer.
Em: Jorge de Sena, Poemas Escolhidos, Círculos de Leitores, 1989, p. 50/1