Postos a ser o que lhes é os sábios, que são os encarregados de estudar e ter dúvidas, os soldados, cujo dever é o de obedecer e agir, e os frades, como deviam ser os homens de todas as religiões, à imitação da muçulmana, irmãos de acordo com a etimologia e a prática e acabando com toda a distinção entre os homens que não fosse a de se esforçarem pelos últimos lugares, passaríamos a olhar o chamado ensino secundário, concordando em que é o mais importante entre todos, se é que há a fazer tais destrinças quando se trata fundamentalmente de libertar o ser humano de todas as limitações que lhe trouxe a vida em sociedade, ao mesmo tempo aproveitando todas as vantagens de que o rodeou a mesma vida.
Pelo de que se trata, até veríamos o ensino secundário como exigindo mais de nós que o superior em cuidados e meios, já que, a juntar a todas as dificuldades que vêm da idade dos alunos, entre menino e homem, está o ainda se encontrarem mais próximos da perfeição que foram, mais cautela de avanço exigindo do adulto para que se vá salvando sempre que possível até que os tempos cheguem de o que veio do céu ao céu se devolva intacto; e, a respeito de quem dos alunos vai tratar, também é bom que se acentue que não deve o professor de ensino secundário saber menos que o de nível superior, primeiro pelo princípio de que nada determina que saiba qualquer homem menos que outro, antes se diria, em nova Lei, que tem sempre cada qual de saber mais do que o outro e os dois, juntos, de saber mais que separados; segundo, porque o naipe de perguntas do mais jovem é mais vasto que o do outro, que já começa, infelizmente, a especializar-se.
Por outro lado, a ideia de que o ensino secundário não o é porque está a seguir ao primário, mas porque é segundo em valor quanto aos dos universitários entra fácil demais no espírito de quem faz orçamentos e leva a tabelar salários, como se tal devesse admitir-se quanto à existência de professores: todos têm de ganhar o mesmo, e bem; todos devem ter a mesma preparação e de tal maneira se equivalerem que seja possível em qualquer altura substituir o professor de um grau de ensino pelo de outro grau vulgarmente considerado inferior; e se o lidar nos fosse escala, então mais deveriam ganhar os professores primários cuja tarefa é infinitamente mais difícil do que a dos outros e em lugares mais incómodos.
E já que passaram perto temas de ensino secundário e de situação de professores, bom seria acentuar que a preparação de professores primários deve ser tirada do nível secundário em que tem estado e passar a nível superior; o lugar das escolas normais é nas universidades e, sobre a preparação básica das especialidades, devem oferecer as mesmas psicologias, as mesmas didácticas e as mesmas histórias de educação que já se dão aos que preferem o ensino secundário e de que estão isentos, não se sabe por que motivo, os professores de ensino superior; como excelente será declarar eu logo que não acredito demais no valor de tal preparação pedagógica, e que bons pedantes se fabricam com tais matérias; professor é o que sabe e o que mama e o que junta ao amar e saber algum sentido da ironia, para que se não tomem muito a sério ele, e o discípulo; mas sempre poderá ajudar a quem ensine saber como progresso escolar tem sido um lento desprender-se da mania de que criança, (...), se tem de moldar sobre o adulto, como se nós, tais como a vida nos fez, puséssemos ser modelo seja do que for; saber também como se está investigando o funcionamento do espírito e como a psicologia actual, ainda tão próxima do nebuloso, ainda tão hesitante entre a psicanálise e o rato de laboratório, está contribuindo para a tarefa fundamental, se homem o quer ser completo, de equiparar espírito e corpo e de mostrar que ambos podem, ao mesmo tempo, ser fortes e fracos, belos ou abjectos, inferiores ou superiores, ideia a que já chegou há muito a geometria analítica e, reflectindo sobre ela, o ibérico Espinosa; saber ainda que o resumo de toda a verdadeira didáctica consiste em não ensinar, mas em deixar que o aluno aprenda, não caindo nas tentações da exibição de ciência e da resposta pronta, quem sabe se para termos mais tempo livre, e conduzindo-o apenas a uma mais exacta formulação da pergunta e ao limiar dos meios que lhe permitirão passar dessa a outra, por intermédio de uma resposta.
É bom em qualquer grau de ensino que o professor deixe de ser o habitual orador e aproveite para estudar o tempo que até agora tem dispendido a falar; já há bastantes livros que o aluno por si estude, bastante material de laboratório, mais ou menos habitual e barato, para que o aluno faça por si as experiências e perceba como se edifica o saber; já há bastante vida à volta para o aluno a possa visitar, examinar, criticar e deixe de ser a escola a prisão em que habitualmente corrigimos a delinquência de se ser criança; quando menos aparecer o professor tanto melhor a escola; pode ser que um dia o suprimamos e vamos nós à escola para reaprender a infância; mas talvez baste por agora que tenhamos as maiores dúvidas sobre o nosso valor de mestres; com um acrescento: a de que esse bastar jamais nos baste.
Veria o ensino secundário como o eixo fundamental da preparação do homem, ou melhor, da libertação do homem para as tarefas de entender o mundo que há, (...), ao mesmo tempo que, (...), o de melhorar o mundo que há, (...). Para entender o mundo, outro jeito não há senão o de o olhar, decompondo-o, medindo-o e surpreendendo-lhe as mais íntimas e as mais elementares das relações de que é feito, as quais relações, por serem íntimas e elementares, são as mais difíceis de compreender e exprimir; livro só serve como relatório do que outro viu e nos pode ser útil, ou como arquivo de perguntas; se toda a escola devia ter uma biblioteca do que já se sabe, devia ser-lhe paralela outra; ainda mais fecunda, a do que se não sabe; génio é o que se concentra no mistério; vamos tomando a pouco e pouco consciência de que toda a criança é um génio; que sirvam ao menos os adultos para lhe levantar um catálogo de nossa extensa ignorância. É com o universo à volta que a criança deve ter o seu essencial contacto, dando-se-lhe linguagem na medida em que dela precise para exprimir com exactidão e pondo-lhe claro, logo de princípio, que ela se divide em duas grandes categorias, a da língua que fala, que deve ser no nosso caso a daquele português ecuménico que não ache errado o modo brasileiro e aprenda a pronunciar a sua língua de forma que o entendam todo o espaço português e o estrangeiro que já o sabe ler; e a da matemática, que por isso lhe deve ser ensinada, desde o primário, como o que ela própria foi de início, uma ciência tão experimental como o é hoje a química; o que não quer dizer que ache eu que jamais teria sido possível matemática se não houvesse na estrutura do espírito humano a possibilidade de distinguir pela análise que todo o par é composto de um mais um.
Em: da Silva, Agostinho, Educação de Portugal, Ulmeiro, Lisboa, 1989, p.p. 61 a 64.
Do mesmo autor, em:
«Quadras Inéditas»
POEMA EM METRO
Saldanha Campo Pequeno
Campo Pequeno Saldanha
muita gente pouca vida
pouco amor e muita manha.
_______________________
Podes bem viver contente
se digeriste o passado
e ordenas todo o presente
para um futuro inventado.
______________________
Para tantos existir
é uma queixa pegada
terem de ganhar a vida
quando afinal lhe foi dada.