segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

SE NOS RENDERMOS, MORREMOS...

Harold Cardinal, índio cri,nasceu em 1945 em High Prairie, na província de Alberta, no Canadá, e foi criado na reserva de Sucker Creek. Veio a tornar-se um hábil político, defendendo os direitos dos índios do Canadá. Harold Cardinal descreveu a história desses direitos como «a crónica vergonhosa da indiferença do homem branco... [do] seu desprezo deliberado... e [da] repetida traição da confiança que nele depositámos». A passagem seguinte é extraída do seu livro The Unjust Society of Canada´s Indians.

O nosso povo já não acredita. Isto é simples e claro. O governo canadiano bem pode continuar a prometer participações, consultas, programas progressistas de desenvolvimento humano e económico, porque a verdade é que não voltaremos a acreditar em tais coisas...

Após gerações de incessante frustração com o governo canadiano, a nossa gente está cansada e impaciente. Antes de o governo tentar novamente sossegar-nos com hipócritas declarações políticas, com ainda mais ocas promessas ou com a mais retorcida das retóricas, o nosso povo, o povo dos índios, exige que sejam aplicados todos os nossos direitos aborígenes estabelecidos por tratado. A aplicação dos direitos indígenas pelo Governo da rainha tem de ocorrer antes de haver qualquer outra cooperação entre os índios e o Governo. Nada mais pedimos. Mas não esperamos menos do que isto.

Bem entendido, o primeiro-ministro encheu-nos de esperança ao falar duma sociedade compassiva e justa. Mas, logo depois, o seu ministro dos Assuntos Indígenas veio dizer-nos que os nossos problemas acabariam se nos tornássemos simpáticos e dóceis homens brancos como os outros canadianos. Há pouco, o próprio primeiro-ministro deu com a língua nos dentes; Numa discussão em Vancôver, declarou o Sr. Trudeau: «O governo federal não está preparado para garantir os direitos aborígenes dos índios do Canadá...»

Para os índios do Canadá, os tratados representam a Magna Carta indígena. Os tratados são para nós coisa importante, porque fomos para essas negociações de boa fé e com a esperança de uma vida digna. Sobrevivemos com pouco durante mais de um século; fizemo-lo, porém, sempre com essa esperança. Terá o homem brAnco participado em tais negociações com um menor compromisso em mente? Ou repudiarão essa obrigação que lhes compete os descendentes dos homens que assinaram por sua honra? Os índios participaram nas negociações do tratado como homens de honra, como iguais dos representantes da rainha, acreditando os nossos chefes de então que estavam a negociar com um povo igualmente honrado. Os nossos chefes comprometeram-se a si mesmos, ao seu povo e aos seus descendentes a honrar o que então ficou estabelecido.

Mas os nossos chefes pensaram equivocadamente que tais pessoas fariam o mesmo que os índios, obrigando-se a si mesmos e aos seus herdeiros ao cumprimento dos tratados...

Os tratados foram a forma por meio da qual o povo brnco legitimou, aos olhos do mundo, a sua presença na nossa terra. Foram uma tentativa no sentido de ficarem estabelecidos os termos da ocupação numa base justa, para extinguirem legal e moralmente as reivindicações legítimas do nosso povo à posse da nossa terra. Nunca no espírito do nosso povo houve a menor dúvida de que a terra do Canadá lhe pertencia...

Na língua dos Cris, as reservas são conhecidas pelo seguinte nome: a terra que guardámos para nós ou a terra que não demos ao Governo. Na nossa língua, skun-gun...

Tanto quanto nos diz respeito, os nossos direitos contratuais representam um acordo sagrado e honroso entre nós próprios e o governo canadiano, acordo esse que não pode ser revogado unilateralmente pelo Governo devido aos caprichos de um dos seus dirigentes, a menos que o Governo esteja disposto a restituir-nos a propriedade da nossa terra.

Os nossos direitos têm demasiado valor para se renderem a qualquer espécie de retórica; demasiado valor para serem vendidos por ouro. Porque as palavras mudam e o valor da moeda é flutuante, podendo até deixar de existir; mas a nossa terra não irá desaparecer.

Não podemos ceder os nossos direitos já não significam nada, se é inconcebível que a nossa sociedade tenha tratados com a sociedade branca, apesar de esses tratados terem sido assinados, de ambas as partes, por homens de palavra e boa fé, muito antes de o actual Governo decidir rasgá-los como inúteis pedaços de papel isso quererá dizer que nós, como povo, já não significamos coisa nenhuma. Ora, nós não podemos aceitar semelhante conclusão; e não vamos aceitá-la. O que sabemos é isto: enquanto lutarmos pelos nossos direitos, haveremos de sobreviver. Se nos rendermos, morreremos.

Em: A Fala do Índio - Auto-Retrato da Vida dos Povos Nativos da América do Norte -, Teri C. McLuhan, Fenda Edições Lda, Lisboa, 2000,  pp. 173 a 175.