terça-feira, 21 de novembro de 2023

PROVOS E SITUACIONISTAS: SOBRE TRANSPORTE E HABITAÇÃO - JOSÉ MENDES

(Panfleto eleitoral Provo, Países Baixos, 1966) 

PORQUE votam os amesterdameses inconvenientes em PROVO?

O LIEVERDJE (uma estátua em amesterdão que é usada como símbolo do movimento provo):

O Provo considera que Amesterdão deveria ser a primeira cidade-alegria do mundo, em que nenhum acontecimento é proibido e toda a gente é livre de dizer o que quer. Tosse, tosse... Estou feliz por saber que o Plano Chaminé Branca, dos Provos, vai acabar com a poluição do ar. Eles estão a lutar contra a Mobil Oil, que está a empestar o nosso ar.


O ESTIVADOR:

Os Provos resistem às autoridades. O seu Plano Branco é a solução para o congestionamento do trânsito em Amesterdão, i.e., impedir a circulação de carros no centro, substituídos por transporte público, bicicletas brancas municipais, eléctricos gratuitos e táxis eléctricos.


DOMELA NIEUWENHUIS (grande decano do movimento dos trabalhadores holandês):

Enquanto anarquista, vou certamente votar Provos. Eles vão controlar as autoridades na câmara municipal e vão manter toda a gente informada acerca do que se passa em Amesterdão. Direitos para todos, casas para todos. Hurra para os planos de habitação Provo... O Palácio Real não deveria estar vazio, deveria ser usado como centro de reuniões colectivas. Morte aos descendentes do Rei Gorila (Rei Guilherme II)...

 

A contestação social é facilmente traduzida no modo como o planeamento urbano e o tratamento deste espaço é pensado. Talvez a maior virtude dos aglomerados urbanos, por oposição aos assentamentos rurais, é o progresso social e ideológico fruto da sociabilização e da criação de culturas dentro das cidades, que favorece a origem e consolidação de identidades que reflectem determinados tipos de pensamento. Os identitarismos urbanos são a base de expressão e propagação de ideias nascidas nos núcleos urbanos e estas, por sua vez, surgem frequentemente como respostas a paradigmas vistos como requerentes de transformação.

As dinâmicas e circuitos associados à disseminação de ideias encontraram no século XX um ponto de viragem (decorrente do progresso técnico e material) que permitiria uma facilidade substancialmente acrescida no que toca à comunicação de pensamentos, manifestos e críticas. É neste contexto que vários movimentos encontraram nas artes plásticas e gráficas meios de comunicação com um grau de possibilidade de massificação bastante elevado.

Foi tirando proveito destes meios novos e diversificados que o movimento Provo (abreviatura para provocatie - provocação em holandês) iniciou a sua actividade nas ruas de Amesterdão, em 1965, com uma série de performances de Robert Grootveld. A acção dos Provos, enquanto movimento organizado, consistiu na publicação e distribuição de panfletos, posters e revistas (publicadas regularmente entre 1965 e 1967), assim como performances artísticas de rua, designadas Happenings, algumas delas anunciadas nos meios de comunicação do movimento. Os Happenings podiam ser organizados e publicitados, de forma a apelar à participação do público geral, ou actos relativamente espontâneos levados a cabo por membros do movimento, sempre com o objectivo de expressar as suas atitudes de teor reivindicativo e expor as autoridades (sejam elas de que dimensão for). Todas as acções do movimento eram conotadas de um valor artístico que era bastante intrínseco à expressão das suas reivindicações. Abordar-se-ão duas de maior interesse para a questão do transporte e da habitação.

Como habitual na sua prática, os Provos começaram a fazer circular nas ruas de Amesterdão um panfleto, da autoria de Luud Schimmelpennink, que anunciava um Happening intitulado Witte Fietsenplan (Plano das Bicicletas Brancas). O plano consistia em espalhar 50 bicicletas pela cidade para que pudessem ser utilizadas levremente pelos habitantes, apresentando assim uma solução para a diminuição do trânsito automóvel dentro da cidade. O panfleto publicitava a apresentação do plano para o dia 28 de junho de 1966 e nesse mesmo dia a multidão que se juntou para a inauguração da proposta foi violentamente dispersa pela polícia.

As bicicletas foram confiscadas a pretexto de que estas, por serem propriedade sem dono, encorajavam ao roubo. Este Happening teve sucesso pela atenção mediática e exposição pública que recebeu após a intervenção da polícia, que reforçou o argumento anti-autoritário do movimento e o expôs assim ao público. As consequências práticas imediatas poderão não ter sido tão impactantes quanto as que o grupo pretendia, mas se pensarmos na atualidade verificamos que as aplicações digitais que dão acesso a trotinetes e bicicletas eléctricas em vários centros urbanos se assemelham bastante à lógica de propriedade comum urbana para o transporte. Embora no caso contemporâneo a propriedade não seja comum, mas um meio de capitalização privada.

Meses antes, no mesmo ano, é anunciado um outro plano, o Witte Huizen Plan (Plano da Habitação Branca), por Auke Boersma. Neste, numa provocação à monarquia, propõe-se que o Palácio Real de Amesterdão, na praça Dam, seja convertido no «Kollektieve Klass Tempel» (Coletivo Templo do Pai Natal, numa tradução livre), que seria aquilo que consideramos hoje uma Ocupa. A proposta estendia-se além desse edifício e incitava a que se pintassem de branco as portas de todos os edifícios abandonados e que estes fossem registados, como forma de organização de um plano de habitação, para responder a uma falta desta mesma valência que se fazia sentir na cidade, afetando sobretudo jovens (além daqueles já frequentemente em posições vulneráveis).

Transcrição parcial de artigo publicado no centenário Jornal A Batalha de Março / Agosto de 2023.

Como fica patente, neste excerto, o problema dos transportes, habitação e poluição não é novo, muito pelo contrário, é inerente ao sistema capitalista (liberal, de estado ou misto) e - como a realidade comprova - é permanente. E só vai piorando... Porque é impossível conciliar a ganância especulativa do capital, com os mais elementares direitos de todas as pessoas, em particular das pessoas que trabalham, produzem riqueza e garantem o funcionamento de toda esta engrenagem corrupta e violenta que nos impõe: destruição, fomes, guerras e morte.