segunda-feira, 22 de maio de 2023

Lutas de professores: A força inorgânica a incomodar velhas estruturas

Lutas de professores: A força inorgânica a incomodar velhas estruturas


O presente texto pretende ser uma espécie de revisitação, não exatamente exaustiva, dos últimos acontecimentos no que concerne às lutas dos professores. Invocam-se comentários que amiúde se vão ouvindo e alguns aspetos por muitos já esquecidos. Referem-se as motivações e os temores que atormentam a classe em foco. Frisa-se a importância das redes sociais nas movimentações em curso, procura-se um vislumbre sobre as diferentes táticas sindicais. Perante a sua demonização, sublinha-se, acima de tudo, a importância das lutas “inorgânicas”, não controladas, da solidariedade e da não acomodação, num momento que se quer de mudança.

Não podemos compreender o que se passa hoje na luta dos professores sem entender as que a antecederam. Se quisermos colocar esse passado mais recente numa ideia, afirmamos que as lutas fraturantes só chegaram a sê-lo quando se combinaram novas reivindicações, na agenda do grande tema «educação», com novos modos de colocar estas reivindicações. Estas têm, muitas vezes, as redes sociais a servirem de primeiro local de discussão e, em última análise, de trampolim até ganharem a dimensão da rua.

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O endurecer das “lutas fofinhas”

Nestes últimos vinte anos, a norma foram as chamadas «lutas fofinhas». Ações pouco combativas, altamente controladas, numa postura de acanhamento estratégico por parte dos sindicatos. Nalguns casos mais caricatos, verificaram-se, inclusivamente, manobras de dissuasão de professores em posições de maior fragilidade.

Um bom exemplo disso mesmo foram as lutas de 2015, contra a Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC), quando todos os professores com menos de cinco anos de serviço foram considerados “não professores”. Pelo facto de a maior parte destes (ou mesmo a totalidade) serem professores contratados, a sua causa pouco ou nada mobilizou os grandes sindicatos. Não raras vezes, pessoas afetas a estes desencorajaram o boicote à realização da PACC. À porta das escolas e com maneirismos de Velho do Restelo, muitos o desaconselharam com comentários do género «não há nada fazer, entrem, senão ainda são prejudicados!», «ainda perdem mais!». Comentários para os colegas que, espontaneamente, preparavam o boicote e pediam solidariedade. Felizmente, como foi o caso em Beja, muitos foram os professores que entraram nas salas de aula, não para fazer a dita prova, mas para a boicotar com gritos de ordem, subindo para cima das mesas. Pelo menos num caso, o alarme do incêndio foi acionado para acompanhar o tom do protesto. A PAAC acabou por ser revogada, mas o momento foi definidor, para quem ainda tinha dúvidas sobre o papel dos grandes sindicatos e sobre quais eram as suas causas, estritamente relacionadas com as problemáticas aplicáveis aos professores «de 1.ª», os do quadro. Manifestamente não estavam à altura das lutas que se vislumbravam necessárias, e os professores estavam fartos de acordos que não correspondiam às suas legítimas preocupações.

Neste clima de considerável desencantamento, tem contexto a constituição do Sindicato de Todos os Professores, o S.TO.P. Este surge na esfera do Movimento Alternativa Socialista (MAS), partido da extrema-esquerda com origem na Frente de Esquerda Revolucionária que rompera, em 2011, com o Bloco de Esquerda, de que fez parte, sem nunca vir a conseguir disputar resultados eleitorais significativos. Uma genealogia que pouco pesará no caminho de um sindicato que se reclama de «não sectário e apartidário», e que, desde o seu início, proclama querer ouvir todos os professores e corresponder-lhes nas suas ações. Uma das primeiras lutas do STOP acontece em 2018, tendo como enquadramento o governo da Geringonça. Muitos professores acharam que seria o momento ideal para discutir a melhoria da sua situação, esperançosos numa esquerda mais favorável à classe dos professores e reivindicando respostas para problemas antigos: a recuperação do tempo de serviço, as cotas na avaliação e o fim da precariedade laboral para as vidas decididas, ano após ano e na melhor das hipóteses, a 31 de agosto.

Em 2018, os grandes sindicatos FENPROF e FNE (sindicato que só existe para quando o PS está na oposição ou para assinar o que convém aos governos) não quiseram “levantar ondas”, justificando com a mesma retórica que se veio a repetir em 2022: não queriam ter os pais contra os professores, não queriam que os alunos fossem prejudicados no acesso à universidade. Esquecendo uma regra básica das lutas sindicais: se não moer, não há resultados. Será o STOP, ainda hoje com muito poucos associados, que percebendo o descontentamento dos professores assume a dianteira e declara greve às avaliações dos 9º e 12º anos. Os “velhos” sindicatos nem quiseram acreditar…

Era uma luta bastante arrojada para acabar com as «ações fofinhas» que não levam a nada. Muitos entenderam que, de facto, havia que trilhar outros caminhos e aderiram à greve. A resposta da então Secretária de Estado, Alexandra Leitão, foi o envio de orientações para que as escolas concluíssem «impreterivelmente até julho» as avaliações finais dos alunos, indicando que os diretores escolares só poderiam autorizar as férias aos professores depois destes terminarem os processos de avaliação e o lançamento de todas as notas. A greve declarada pelo pequeníssimo STOP e suportada por muitos professores (muitos deles sindicalizados na FENPROF) veio agitar as águas. A luta foi forte, os grandes sindicatos, sentindo-se, pela primeira vez em muitos anos, ultrapassados, resolvem finalmente mostrar alguma ação. Optam por ditar greves para os anos que não implicavam exames, sendo claro que greves a esses anos não teriam qualquer efeito prático senão o de fazer os professores perderem dinheiro. A 12 de julho já a FENPROF dizia que os professores tinham de ir descansar.

A pressão foi enorme e vinha de vários lados. Houve diretores a obrigarem os professores a repetir reuniões todos os dias quando, legalmente, seriam necessários dois dias de intervalo, por exemplo. A greve do STOP foi perdendo fôlego. Para finalizar esta jornada, foi convocada pela FENPROF uma manifestação debaixo do viaduto em frente ao Ministério da Educação, na Avenida 24 de Julho. A esta juntou-se um pequeno número de sindicalistas do STOP. O que se pôde observar não foi bonito de se ver, nem de se ouvir. Os novos sindicalistas, ao tentarem meter a sua faixa, são empurrados, injuriados, e só à custa de muita persistência conseguem garantir o seu espaço naquela manifestação. Era evidente que passara a haver novas forças atuantes, e os velhos atores não estavam dispostos a sair de cena, a perder a dominância do seu estatuto, ou sequer a partilhar a ação com os que então emergiam.

Na realidade, o que fez com que a luta fosse grande não foram, propriamente, nem as estratégias do sindicato emergente nem a dos «veteranos». De início, os primeiros facilitaram-na e, com isso, também ganharam alguma credibilidade que contribuiu para a sua ascensão. Foi substancialmente decisivo o facto de os professores, em cada escola, resolverem falar uns com os outros e entre eles acertaram medidas que permitiram a continuidade da ação. Nomeadamente, fazer fundos de greves para os que perdiam mais (os contratados, normalmente) ou, articular as faltas para garantir o impacto e distribuir as perdas. A chave estava nesta solidariedade tática que substituiu o «taticismo político» (isto é, o «taticismo partidário»). Os professores entenderam isso, com bastante clareza.

Nas salas de professores fala-se em união em tempos de «é agora ou nunca».

As greves em que os professores não ficam em casa

Chegados a outubro de 2022, volta a perceber-se o marasmo nas lutas sindicais tradicionais e, tal como em 2018, o STOP volta a perceber que é momento de agir por outras vias. Agora a sua situação é outra, este sindicato foi também chamado a participar nas negociações, com o Ministério da Educação (ME) e levará a estas os pontos que considera pertinentes.

O Ministério quis abordar a alteração aos Quadros de Zona Pedagógica (QZP) e as novas regras no processo de recrutamento. Os professores quiseram mais, e quando, a 2 de novembro de 2022, o ministro João Costa vai ao parlamento, é marcada uma manifestação e uma primeira greve. A greve é convocada pela FENPROF, e o STOP adere. Globalmente, é pouco participada, e muitos são os professores nas redes sociais que expressam o «amargo de boca» que resulta destas pequenas greves, «as mesmas de sempre, as mesmas a não darem em nada, mesmo só para perder dinheiro». No seu rescaldo, surgem propostas de medidas mais drásticas, greves de mais dias. Da reunião de dia 7 de novembro, nada de bom adveio. Fala-se da criação de um conselho local (intermunicipal) de diretores dos agrupamentos de escola. Caberia a este conselho analisar e definir o perfil dos professores para, mais tarde, este constituir critério de seleção. Soaram os sinais de alarme quanto aos impactos desta mudança, considerando os favorecimentos ilícitos, «cunhas», clientelismos que essa municipalização subentendia.

Nas redes sociais, o estado de descontentamento é a nota geral, com cada vez mais professores expressando a vontade de agir e o descontentamento com os sindicatos tradicionais. Sentem que não podem contar com eles: «só querem fazer de conta que lutam». Muitos pedem greves às avaliações, greves que durem vários dias; outros pedem para que sejam divulgadas as propostas do Ministério da Educação (ME), das quais se vão conhecendo apenas partes avulsas. Neste contexto, o STOP organiza um plenário nacional no dia 16 de novembro, aberto a todos os professores, e avança com uma sondagem (na qual participam mais de 6000 professores) para inferir sobre as formas de luta. Paralelamente, as conversações com o ME prosseguem.

A 23 de novembro é convocada pelo STOP uma greve por tempo indeterminado. A proposta que muitos professores vinham referindo nas redes sociais, falando nas salas de professores, é posta em prática O sindicato STOP faz um convite a todos os sindicatos para se juntarem, mas não obtém respostas. A FENPROF, tal como em 2018, retarda a demonstração do seu posicionamento, e os seus sindicalistas procuram ridicularizar e taxar de «aventurismo» as ações do STOP: «as greves devem ser planeadas com antecedência», «tudo isto demora tempo». No plano da ação, e para diminuir o impacto nos salários, propõe-se que a greve se restrinja aos primeiros tempos. Nas salas de professores fala-se em união em tempos de «é agora ou nunca». Começa a preparação da greve «de todos para todos» com a participação de mais de 4500 professores, quando os sindicalizados do STOP rodariam apenas os 1300 docentes. As lutas, que se tinham como urgentes, não podiam esperar, como queria a FENPROF. Nos preparativos, foi pairando a sombra das possíveis contra-ações por parte dos sindicatos tradicionais, que, ao não se juntarem, poderiam contribuir para a diminuição do impacto pretendido. As memórias de 2018 persistiam, esperava-se qualquer coisa. E aconteceu: a FENPROF marca uma manifestação para daí a três meses, em março de 2023. Incrivelmente, ou nem tanto assim, os meios de comunicação remetem para esta greve, mas sobre a greve que estaria prestes a começar, existe apenas um silêncio ensurdecedor. A indignação era mais ou menos geral em todas as escolas.

Com todas as vicissitudes, as coisas estavam a andar, com uma força pouco vista. Muita gente se juntava nas reuniões sindicais e frequentemente se ouvia dizer que há muitos anos não se via disto: «38 pessoas numa reunião de sindicato!», ecoava numa das escolas. Nos meses que se seguiram, surgiriam mais de duas centenas e meia de comités de greve. A greve começa a 9 de dezembro, e durante dias vão sendo partilhadas em grupos de whatsapp e no facebook fotos de professores à porta das escolas com cartazes feitos por eles próprios, ao frio e à chuva. Começaram por ser poucos, mas a cada dia, este número foi aumentando. Ao contrário das greves tradicionais, os professores não ficam em casa. Cada vez mais gente nos portões das escolas, cada vez mais escolas fechadas. Nalgumas, em poucos dias, a mobilização passa de um professor para trinta. Para sublinhar as greves, o STOP resolve marcar uma manifestação em Lisboa, no dia 17 de dezembro, convidando todos os outros sindicatos a juntar-se. Não obteve resposta. Indignados com os posicionamentos da FENPROF, que se mantinha alheia à luta, muitos optam por quebrar com o vínculo que tinham com este sindicato. Nas escolas começa a haver pressões dos sindicalistas, incluindo ao nível das direções. As calúnias e invocação de temores vários passam a ser a resposta perante a luta em grande crescimento. Durante bastante tempo, persistiu o boato de que quem tivesse feito esta «greve ilegal» teria falta injustificada. O que resultaria na impossibilidade de vínculo laboral aos que estavam perto de o conseguir, pois precisavam dos 365 dias para o alcançar. Tudo valeu, inclusive, afirmar que estes grevistas estavam a ser «manipulados pelo partido de extrema-direita». Uma colagem que se estendeu aos opinantes da comunicação social, correndo a etiquetar as novas expressões sindicais como similares aos populismos extremistas.

A realidade é que as pessoas se juntaram pelas mais variadas razões. Dificilmente existe um corpo homogéneo em luta, o que apenas reflete a diversidade dos profissionais da educação. Houve quem se juntasse pela melhoria das suas condições individuais, pela melhoria das condições nas suas escolas, pela defesa da escola pública, pelos alunos e por todos aqueles que participam no processo educativo. Também houve quem se juntasse por oposição ao partido em funções, vendo nesta crise e contestação uma oportunidade de enfraquecimento do governo. Há quem tenha aspirações políticas e se mobilize com esse fito. E não há qualquer inocência: sendo os sindicatos instrumentos sempre partidarizados, há também quem conte ganhar força enquanto partido.

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E de repente já nada pode voltar atrás

Foi com este pano de fundo que se deu a surpreendente manifestação de 17 de dezembro, no Marquês de Pombal. Um mar de gente. Todos se perguntavam: como foi possível? Estrutura organizacional mínima, tinham sido os próprios professores a perceber a urgência da luta e a transporem-na em auto-organizações, que somaram mais de 20 mil manifestantes pelas ruas de Lisboa. Faixas, cartazes, novas palavras de ordem, organização de autocarros, boleias. Provou-se que os professores teriam, eles próprios, de tomar nas suas mãos a luta, escola por escola. «Que surpresa e que raiva ao mesmo tempo, porque ainda podia estar ali mais gente», um pensamento de fundo subjacente à perspetiva de que se poderia ter contado com a cooperação dos sindicatos tradicionais. Não obstante, foi grande e combativa e bem diferente das «marchas tradicionais». Nos dias que a antecederam, palavras de descrédito do primeiro-ministro e do ministro da Educação. Um jornalista do Jornal de Notícias estimava que seriam cerca de «trezentas pessoas», os trezentos «“manipulados” pelo líder do sindicato “radical”». Terá também isso indignado ainda mais os professores e dado mais força à manifestação?

Deixou de ser possível continuar a ignorar a greve. Finalmente, a luta começava a ser tema de abertura dos telejornais. A manifestação parecia ter juntado os professores mais politizados de cada escola (e também, naturalmente, sindicalizados da FENPROF). Foi a manifestação de quem se tinha atrevido a começar a luta, e não foram os 1300 sindicalizados do STOP que o conseguiram. Foram sobretudo os vários milhares de professores que se envolveram, que trouxeram a luta para as conversas de sala de professor, para as assembleias, para as redes sociais. Estas últimas, permitiram compreender a amplitude e o que se ia passando nas outras escolas, o que se revelou bastante motivador.

A manifestação, com mais de 20 000 pessoas, veio reforçar a greve e, especialmente, expôs a FENPROF que «ficou mal na fotografia». Toda a gente se perguntava: porque é que a FENPROF não estava ali? A explicação é a mesma que justificou o seu posicionamento em 2018: o ator principal não está disposto a partilhar o palco, nem a perder protagonismo. Mas, desta vez, houve consequências. Muita gente cancelou a sua sindicalização ou ameaçou fazê-lo. Nas redes sociais, afirmam não querer pertencer a um sindicato que não ouve os professores e que, há décadas, diz que defende e negoceia, mas que nada ou quase nada conseguiu quanto à dignificação da classe docente. «Não quero pertencer a um sindicato que não quer melindrar a classe política e que, portanto, faz protestos e greves fofinhas, para não fazer muita mossa», dizia uma professora. Evidentemente, isto fez soar de novo os alarmes.

É neste ponto que começa a fazer cada vez mais confusão a questão da inorganicidade. Começa outra «batalha», a batalha contra quem não percebia ou recusava que as lutas pudessem ser inorgânicas – agindo escola a escola e auto-organizando-se sem o controle sindical. «Mas quem manda neles?»; «Quem está contente com isto é a direita!»; «Está a haver aproveitamento da extrema direita»; «Estão a distorcer os factos»; «Não se percebe as vossas reivindicações.» Tudo serviu para tentar negar ou subestimar o facto dos professores, muito mais do que em 2018, estarem a organizar-se por si e a conquistar espaço.

Na realidade, só não percebia as reivindicações quem não queria, porque elas eram claras, bastava ouvir uma assembleia de professores em qualquer escola de Portugal. A admissão de professores apenas e só com base na qualificação profissional; o fim das quotas, em geral, processo pouco transparente, ou, pelo menos, o fim das quotas para o quinto e sétimo escalão; a negação da municipalização do ensino; a redução do número de alunos por turma e das turmas a cargo de cada professor (podem ser 150 a 200 alunos), quando, por norma, os professores contratados têm sempre mais turmas tornando impossível um acompanhamento individualizado aos alunos nestas condições; a atualização salarial, em especial para os contratados e primeiros escalões; o tempo de serviço descongelado; a redução da carga burocrática da profissão (são professores e não administrativos); a redução da precariedade e regras similares às dos outros trabalhadores do Estado (vínculo laboral); redução da distância entre o local de colocação e o local de residência, ou, pelo menos, maior margem de escolha (ficar longe ser uma escolha e não uma inevitabilidade da profissão).

Lutas de professores

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Cada vez mais pessoas nos portões das escolas

A marcha pela escola pública, do Marquês de Pombal até à Praça do Comércio, no dia 14 de janeiro, inaugurou as mobilizações no novo ano. As expetativas eram altas, esperando-se mais gente e não apenas os professores mais politizados. Apesar das múltiplas tentativas de boicote (por diversos meios) e de descredibilização desta manifestação, esta resultou num ainda maior sucesso juntando aproximadamente 100 mil pessoas.

Cada vez mais palavras de ordem, cada vez mais vontade, reforçadas pelas declarações do ministro na véspera, acentuando o discurso da ilegalidade da greve e a narrativa culpabilizadora dos «pais contra os professores». André Pestana ganhava uma «aura de herói», daquele que, ao contrário dos outros sindicatos, tinha conseguido unir os professores colhendo a importância catalisadora do STOP em fases iniciais, pois não poucas pessoas reclamavam os seus «guias» e «líderes», para avançar. Não poderá, contudo, e não o esqueçamos, atribuir-se às suas ações a magnitude da movimentação. A greve continuava, e havia cada vez mais pessoas nos portões das escolas.

A FENPROF percebe que, necessariamente, teria de agir e bem antes de março. Acampam à frente do ME, durante três dias, contando com a participação, não dos professores, mas dos «sindicalistas velha-guarda». Com mais tempo de antena do que aquele que é dado à contínua greve do STOP. Acabam por marcar uma greve intercalada por distritos ao longo de 18 dias, que começa com uma concentração no Rossio com pouca adesão. A greve conta com os demais sindicatos: a ASPL, a Pró-Ordem, o SEPLEU, SINAPE, SINDEP, SIPE e SPLIU. Por seu lado, o Governo não desarma e insiste com a teoria de que existe «um erro de perceção dos professores», afinal, um erro de perceção de milhares de pessoas. Ataca a greve como pode, afirmando que havia fundos de greve ilegais, difundindo nos meios de comunicação uma «campanha contra professores», passa a dar peso às associações de encarregados de educação, como a CONFAP, e alinha na exigência de serviços mínimos. Porque há crianças que só comem na escola (afinal existe essa noção, mas este argumento nunca é lembrado quando a questão é a falta de qualidade da comida servida nas cantinas), porque os pais precisam de ir trabalhar (sem questionar «a ideia de escola-depósito»), os serviços mínimos vão ganhando a opinião pública.

A greve tomara proporções, efetivamente, impactantes. Há alunos a ter aulas de forma intermitente, nalguns casos sem aulas durante dias seguidos. Contra o direito à greve, impõe-se serviços mínimos apenas para as greves do STOP. Havia que condicionar o sindicato que juntava os professores apelidados de mais «radicais e intransigentes», fora do controlo dos partidos parlamentares. Mas foi a perceção de que a maioria das pessoas se estava a unir, por si só e entre si, o fator significante e surpreendente que deixou (deixa) muitos em pânico.

só não percebia as reivindicações quem não queria, porque elas eram claras, bastava ouvir uma assembleia de professores em qualquer escola de Portugal.

Uma marcha infinita

A FENPROF marca uma manifestação para dia 11 de fevereiro, e o STOP marca para 28 de janeiro uma marcha pela escola pública, desde o Ministério da Educação ao Palácio de Belém. Muita gente começa a achar que a marcha pode não resultar, há menos conversas nas redes sociais, há medo que a luta esteja a esmorecer. A CONFAP continua a criar pressões para que as escolas garantam a permanência dos alunos nas escolas. Mas, apesar desta descrença mediatizada, mais uma vez, volta a verificar-se uma participação muito alargada ₋ 80 mil pessoas. Continua a ser muita gente.

Além disso, a marcha, tal como a de 17 de dezembro, é muito emocionante porque espelha a auto-organização dos professores e resulta na manifestação mais combativa até então. Os professores fazem um barulho ensurdecedor, gritam, correm. Nesta também participam escolas que, apesar de públicas, correspondem mais apropriadamente às elites (até aí não tinham aparecido) e que entoam «é greve porque é grave!». A luta, afinal, estava em crescendo e bem longe de perder força. Os professores espelham o seu agrado nas redes sociais: «tenho o peito a rebentar de orgulho», «foi um dia histórico». O Presidente da República, quem deveria ter recebido a marcha, ausenta-se e delega o diálogo à conselheira Isabel Alçada, ex-ministra da Educação do governo de José Sócrates. Marcelo, ausente, confia na CGTP da FENPROF a função de acalmia dos níveis de contestação social, e sabe que não poderá esperar o mesmo deste outro tipo de luta.

Os professores gritaram pelos seus direitos, como pelos direitos dos assistentes operacionais (AO) e pelos direitos dos alunos, durante todo o percurso da marcha. O STOP começa, cada vez mais, a trazer para a luta os AO. Foram os AO que, na realidade, permitiram fechar muitas escolas, sobretudo aquelas onde os professores não têm força suficiente. Passou a haver, em muitas escolas, um diálogo entre professores e auxiliares, numa luta que se quer de conjunto e não parcial. Usaram-se fundos de greve para compensar as faltas dos AO, prontamente acusados pelo governo e sindicatos tradicionais de ilegais. Simultânea e lamentavelmente, a muitos AO foi relembrada a sua precariedade e situação de enorme fragilidade. Uma vulnerabilidade usada no amedrontamento à sua participação na greve. Uma vez mais, no final da marcha de 28 de janeiro, muitos manifestantes perguntavam por Mário Nogueira ₋ onde estava a FENPROF naquele momento?

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Para separar as águas

A FENPROF tinha uma carta guardada na manga, preparada para o dia 11 de fevereiro de 2023. Com uma organização profissional, conseguiu transportar gratuitamente os seus sindicalizados, que vieram de norte a sul do país. Muita gente que esteve nas anteriores manifestações continuou a apelar à união, todos deveriam ir, independentemente dos sindicatos envolvidos na organização e pese esta organização de maior monta ter claramente tardado a acontecer.

As circunstâncias haviam obrigado a uma mudança de planos e à antecipação da grande manifestação. Para este dia, os professores são arrumados por distritos, sendo atribuído a cada um destes últimos um setor na manifestação. Uma estratégia avisada, que espalharia os professores e não deixaria lugar a um bloco muito grande do STOP, o último setor, no fim da manifestação. Muita gente com cartazes, t-shirts do STOP não aguentaram a espera e foram diluir-se noutros setores. Esta impaciência deveu-se ao facto de o bloco que lhes coube só ter tido “direito” a movimentar-se pelas 17h, quando a manifestação tinha começado às 15h. Já havia relatos de gente na Praça do Comércio às 16h30, ainda o STOP esperava, no Marquês de Pombal, que os outros setores avançassem muito lentamente. O plano era óbvio: desde o início, importava associar à FENPROF a grandeza da manifestação de 150 000 professores, a maior manifestação de sempre de professores.

Desta vez desfilaram as mesmas bandeiras de sempre, as mesmas palavras de ordem de sempre, que contrastavam com os cartazes do setor na retaguarda, feitos pelos próprios professores, com as faixas a anunciar cada um dos agrupamentos. Quem percorreu toda a manifestação descreveu-a como uma «manifestação morna» contrastando com a energia do bloco do STOP. Na cauda da manifestação, o último setor dos sindicatos tradicionais e manifestantes no bloco do STOP gritavam juntos as palavras de ordem da carrinha deste último. Quando finalmente chegaram ao Terreiro do Paço, já os restantes setores haviam abandonado este espaço. Já não havia luzes, já não havia ninguém no palco. Persistiam apenas algumas centenas de pessoas.

A ideia não era, de todo, contar com todos, mas, sim, separar as águas o mais possível. Os comentários anuíam, «o objetivo era abafar a voz do STOP», «até as luzes apagaram quando o STOP chegou». A FENPROF, por seu turno, acusava o STOP de «ter um comício paralelo dentro da manifestação». A estratégia resultara, a união tão proclamada não consegue ser uma realidade porque o ator principal não quer partilhar o palco. A hostilidade daquele dia de 2018, debaixo do viaduto na Avenida 24 de julho, continuava. Não se subestime estas disputas entre poderes sindicais, pois elas podem, em última análise, contribuir para manter tudo na mesma.

Piores perspetivas, maior inquietude

A manifestação gigante não foi, proporcionalmente, consequente. Entretanto, o STOP resolve marcar mais uma manifestação para o dia 25 de fevereiro. Os ataques de que são alvo aumentam de tom, ora o descrevendo como «ninho de extrema-esquerda»”, ora como sindicato com relações suspeitas ao Chega da extrema-direita (o camião que fora alugado para uma manifestação era de um membro desse partido). O agendamento, coincidente com a manifestação da Vida Justa, foi questionado: «como era possível haver duas manifestações no mesmo dia?»; «aquela gente não fala?». A FENPROF apregoa-se como uma das signatárias da Vida Justa e muitos veem esta tomada de posicionamento como um momento inovador no modo de operar do PC, que controla a FENPROF, e que regra geral, nunca apoia nada que não seja organizado pelo mesmo. A manifestação Vida Justa é encarada como uma oportunidade dos partidos de esquerda se «colarem» a ações dos movimentos sociais. Quanto aos professores, muitos deles queriam estar nas duas: «não percebo esta separação». Outros, porém, achavam que «não tinham nada a ver com aquela luta, era uma luta dos bairros periféricos». Em cima da hora conversações entre os organizadores das duas manifestações acordam em se juntarem frente à Assembleia da República.

A manifestação dos professores, contrário à ideia que as coisas esmoreciam, veio mostrar que a luta continuava em grande, com muita gente reunida, de Chaves a Portimão, e combativa. «Não paramos». Partindo do Palácio da Justiça, percorrem-se locais onde normalmente não há manifestações, como Campo de Ourique, e as pessoas vêm à janela e aplaudem. Alterna-se a sonora marcha com momentos de silêncio, num simulacro de «enterro da escola», mas ouvem-se professores a dizer: “calados para quê? Estamos fartos de estar calados.” Na chegada à Assembleia a polícia não permite que a manifestação conflua com a da Vida Justa. Sente-se a tensão. A manifestação fica parada à espera e, de ambos os lados, ouvem-se discursos de apoio às lutas que informavam as duas manifestações. A organização da Vida Justa recebe a indicação de que teriam de dar espaço à manifestação do STOP. Não parecia ser possível o plano de juntar ambas. Muita gente sai, também por esta razão, e por entre a multidão da Vida Justa, há vozes que acirram o boato: “não é este o sindicato ligado ao Chega?”.

Aproveitando a energia do momento, o STOP monta um acampamento, à frente da escadaria da Assembleia, que persiste três dias. Gritam: “escola a dormir na rua, governo, a culpa é tua.” Nessa semana aumentam as vigílias de professores e acentua-se a subida de tom nos protestos, um pouco por todo o país. O descontentamento com os serviços mínimos, que passam a aplicar-se também aos Auxiliares, é geral, na medida em que hipoteca a hipótese de muitos fazerem greve. A 2 e 3 de março, mais uma greve convocada pela FENPROF, a primeira data para a zona norte e a segunda para a zona sul. Desta vez, é também é convocada uma greve para não docentes pela Federação Nacional de Sindicatos de Trabalhadores em Funções Publicas e Sociais, afeto à CGTP. Desta vez já não há problema em trazer os não docentes para a luta. Mas os serviços mínimos fazem o seu efeito, a greve, apesar de ter uma adesão de 85%, não é eficaz.

Liberdade inorgânica para cimentar a luta

O que resulta inegável é um discurso muito articulado e consistente, por parte dos professores interpolados pelos meios de comunicação, o discurso de quem sabe do que fala e ao que vai. Um entusiasmo com o amargo de ver impedido um entendimento maior, a união em cada escola e a articulação de todas as escolas. O verdadeiro barómetro da luta dos professores estava, no fim de contas, em cada frente-escola. Sem dúvida, as manifestações foram de grande importância, mas bem mais importantes foram os encontros feitos ao portão das escolas e a liberdade inorgânica com que os professores foram cimentando esta luta. A descrença nisso e a dependência de estruturas é o que poderá fazer esmorecer a dimensão da luta. Por enquanto resiste-se, não obstante os ataques, as pressões das direções, do governo e, como vimos antes, dos próprios sindicatos.

O governo coloca-se, prepotente, perante a assinalável mobilização de uma boa parte daqueles que fazem o ensino em Portugal. Serão precisas novas estratégias, persistência e solidariedade combativa. Nos últimos meses, a competição sindical tem vindo espicaçar as formas de luta. Talvez por isso, importe enxovalhar uns, para que outros voltem a uma ação «menos expressiva». Não se subestime, porém, que estas disputas entre poderes sindicais podem, em última análise, contribuir para manter tudo na mesma, por se perder de vista o essencial.

Os professores são, normalmente, uma classe acomodada, que falam mais nos bastidores do que agem no sentido da mudança, mas o cansaço desta longa espera está a produzir os seus efeitos. O ganho de noção da importância da sua força inorgânica começa a ser uma realidade que poderá abanar velhas estruturas. Os professores querem fazer-se ouvir.

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“Pese embora a adesão tímida dos docentes nos primeiros momentos, feridos de traição acerca de acordos pouco transparentes assinados pelos sindicatos em momentos anteriores, viu-se esta adesão crescer em concomitância com o assumir de responsabilidades de protesto por parte das várias comissões de greve criadas de norte a sul do país e, sobretudo, com a crescente certeza de que o acordo com o Ministério da Educação passará menos pela turva transparência de outros interesses a que possam estar sujeitos os sindicatos (geral ou especificamente) e mais pela organização independente dos vários profissionais da educação contra a substituição de uma escola que promova o bem comum por uma instituição-depósito que mais não serve senão de corredor transitório entre a infância e a desapropriação da humanidade do indivíduo em prol da lógica produtiva do mercado.” – Uma professora no Algarve

“Na minha perspetiva, a força desta luta nasce de um cansaço: alguma do sindicalismo “caciquificado”, que fracionou a luta de acordo com os interesses políticos de meia dúzia (inclusive dos sucessivos governos PS e PSD), mas principalmente da visão do professor como cada vez mais carne para canhão – da má gestão dos dinheiros públicos (os primeiros cortes são sempre na educação), da destruturação das famílias por falta de qualidade de vida económica, social e cultural (que fazem dos professores o bode expiatório do seu mal-estar), da falta de visão estratégica do país incapaz de reconhecer uma educação com qualidade e rigor, e não meramente assistencialista, como o valor de base de qualquer sociedade.” – Uma professora em Lisboa Central

“Na minha escola, que fica na periferia de Braga, combinamos num grupo de Whatsapp. Fizemos greve a 2 tempos e 2 dias. De todas as vezes, ficamos à porta da escola. Organizamos -nos para as manifestações. Alguns são sindicalizados, outros não. Eu não sou. Fui sindicalizada desde o início no SPN (da FENPROF) saí há uns anos largos perante a inércia deste (Mário Nogueira). Sou professora há 41 anos, e estou prestes a fazer 63 anos, apesar da suposta redução da componente letiva, o meu horário é de 27 horas na escola, dizem que 14 letivas (7 turmas X2 tempos) mas além das ditas, tenho sempre uma data de grupos para dar apoio. Para ter uma ideia, no ano letivo anterior, dava apoio de português a grupos de alunos do 5° ao 9° ano. Estou cansada, muito cansada. Estou no 10° escalão e vejo com apreensão os meus colegas com menos meia dúzia de anos do que eu a penar para “fintar” as quotas. Participo nas manifestações e faço greve, por mim, claro, mas principalmente pelo estado da escola. O corpo docente tem todo mais de 50 anos. Que será da escola daqui a 10 anos?” – Uma professora em Braga

“Tenho a certeza de que há uma força imensa a crescer-nos nos dedos, independentemente de sermos ou não sindicalizados, e isso pode ser muito perturbador para o status quo, que inclui obviamente governos, mas também sindicatos, infelizmente. Relativamente às forças políticas, sindicatos, diretores das escolas, associações de pais, comentadores de domingo, admito que não nos compreendam. Mas, pelo menos, não atrapalhem. Estamos num momento de não retorno.” – Um professor em Ponte de Sor

“Aproveitando a oportunidade que o STOP proporcionou, através da possibilidade de marcação de reuniões sindicais a quem fosse sócio deste ou de qualquer outro sindicado, ou até mesmo a quem não fosse sindicalizado, e da possibilidade de a partir daí se criarem comissões de greve sem mais uma vez haver qualquer obrigatoriedade de vínculo sindical, foram marcadas em muitas escolas por todo o país as mencionadas reuniões; a partir delas surgiram as várias comissões de greve com um intuito de organizar acções de luta condizentes com a disponibilidade de cada realidade escolar em aderir à greve e criar formas reivindicativas inéditas que pudessem exprimir o desagrado dos docentes (na época as reivindicações ainda não se tinham alargado ao pessoal não-docente). Relativamente à comissão de greve do agrupamento onde lecciono, num primeiro momento a prioridade foi tentar abranger o maior número de docentes possível, tarefa que não se revelou fácil devido ao número elevado de estabelecimentos educativos e à diversidade de ciclos abrangidos pelo mesmo – fizemos diversas acções presenciais junto dos vários estabelecimentos escolares (desde afixação interna de cartazes, até concentrações à porta das escolas), e acções não presenciais que envolveram o estabelecimento de contacto com pessoas que cada um de nós conhecia e que por sua vez foram comunicando com outras pessoas; num segundo momento, priorizou-se a união dos diversos agrupamentos escolares e escolas não agrupadas do concelho de Odivelas. A partir daí realizaram-se várias acções reivindicativas e de informação à comunidade escolar e municipal, estas envolveram a presença à porta dos estabelecimentos escolares onde se prestaram esclarecimentos e distribuiu informação acerca das condições escolares de docentes, não-docentes e alunos; a realização conjunta de duas manifestações a nível concelhio com elevada visibilidade nos meios de comunicação social, foram as acções que congregaram um maior número de pessoas, tendo contado inclusivamente com outros profissionais de educação de concelhos vizinhos ao nosso, que se sentiram impelidos a juntar-se a estas acções.” – Um professor em Odivelas 

 


Texto de  Homem Samarra


Artigo publicado no JornalMapa, edição #37, Março|Maio 2023.